Textos desconexos, indicações literárias, opiniões pessoais, muitas palavras em um visual simples e propositalmente minimalista.

  • Diálogos (2) – A função da discriminação… One Piece #1054

    Lançado há alguns dias, o capítulo #1054 de One Piece tem dado o que falar, seja pelos eventos que estão encerrando um longo arco em Wano, país dos samurais, seja por eventos que irão nos levar a fase final desta incrível obra que está celebrando 25 nos neste ano.

    Contudo há um diálogo neste capítulo – está mais para um discurso – que chamou bastante a minha atenção, e que novamente reflete como muitas vezes One Piece espelha a realidade do mundo real de uma forma nua e crua, em meio a um mundo de fantasia com piratas e poderes malucos.

    Esse diálogo acontece quando Aramaki “Touro Verde” (tradução de Ryokugyu), Almirante da Marinha, o maior poder policial do universo da obra, chega ao país de Wano, que é uma nação que passou anos com suas fronteiras fechadas ao mundo, governado por um grande e poderoso pirata que escravizou seu povo, e que agora foi libertado graças a uma único de um pequeno grupo de personagens, dentre eles os samurais perdidos de Wano e o grupo do Bando do Chapéu de Palha.

    Touro Verde está ali para capturar o Bando do Chapéu de Palha, mas antes de encontrá-los dá de cara com os samurais que agora deverão ser os protetores do país, que agora é comandando pelo filho de um grande herói de Wano, morto por então o pirata que escravizou a todos. Eis que o discurso é feito para os samurais, que agora desejam proteger àqueles que libertaram toda a nação.

    * obs. para a transcrição vou usar uma mistura de traduções, e depois explico os motivos.
    ** Para quem não conhece a obra: Tenryuubitos (Dragões Celestiais) são os Nobres Mundiais desse universo, a qual todos devem obedecer sem qualquer questionamento.

    Touro Verde, então começa:

    — Algum de vocês têm uma mínima ideia de como o mundo funciona lá fora?
    — Os Tenryuubitos** são os Deuses deste mundo!!! Um país como esse, sem laços com o Governo Mundial…
    … NÃO TEM DIREITOS!!!
    —  Não me culpem por isso! É como o mundo funciona!
    (…)
      Aprendam! A humanidade tem perdurado através dos tempos criando e definindo “os inferiores”.
    — Ao desprezar países não-membros como vocês, todos podem sobreviver!!!
    “Discriminação” nos dá estabilidade!!!

    Forte, não? São poucas palavras, mas que dizem tanto. Quanto a tradução, inicialmente rolou uma versão da Opex (um grupo de fãs que traduzem de forma não oficial antes do mangá sair nos canais oficiais) em que a última frase desse discurso dizia — “Preconceito” nos dá estabilidade!!! Contudo essa versão foi revisada, como sempre ocorre, e já saiu do ar. Acabou sendo utilizado a palavra “discriminação”, que também foi utilizada na versão oficial, lançada dias depois pela Mangá Plus, pertencente a própria Shueisha, responsável pela obra no formato digital.

    O discurso também muda em alguns pontos a depender do idioma a qual foi traduzido. Localizar é adaptar, então nem sempre acaba ficando ao pé da letra. Como não entendo nada de japonês, fica difícil buscar o texto ao pé da letra. Em todo caso, acho que as adaptações conseguiram transmitir a mensagem.

    Para quem quiser conferir cada tradução: Opex | Mangá Plus Br | Espanhol | Inglês

    Acho que a tradução da Opex só se distancia mais das demais traduções no penúltimo quadro, quando fala em hierarquias, enquanto as oficiais falam em criar um sistema de classes inferiores. As traduções em português, inglês e espanhol também divergem quanto a última fala, colocando que Touro Verde diz que discriminação traz estabilidade, ou em algumas versões, discriminação traz conforto ou alívio. Tem semelhança, é verdade, mas sutilmente também há uma diferença. Acho que valem ambas para se refletir.

    Ao fim, esse pequeno discurso entrega três falas bem tenebrosas, ao dizer que as pessoas só podem ter direitos humanos, serem humanizadas, se fizerem parte de uma sociedade pré acordada. “Junte-se, obedeça e aí lhe damos direitos“. Depois vem a fala sobre criar um sistema a qual classes inferiores precisam existir, porque é isso que dá sustentabilidade ao sistema criado, a qual precisa que pessoas se sujeitem àqueles que tem mais poderes. O capitalismo tem uma vertente assim, quando impõe um sistema em que todos precisam trabalhar e não há empregos para todo mundo, entregando baixos salários a qual você é dispensável – se não quer, tem outro na fila esperando pra pegar seu emprego. O sistema precisa criar classes menores que se sujeitem a condições nada dignas.

    E então ainda fecha argumentando que tudo isso, toda essa discriminação, ou até mesmo o preconceito da primeira versão da tradução, cria um ambiente que tanto dá estabilidade a esse caos estruturado, quando alívio ou conforto. E aí você pode pensar que é um conforto para quem está no topo dessa pirâmide, ou alívio até mesmo para outras classes, pois há um pensamento muito comum de que é preciso dar graças ao que tem, porque sempre tem alguém pior do que você. A discriminação dando tanta a estabilidade, quando o alívio aí da fala. É tenso. E tudo isso, em uma única página dupla do capítulo. Uau!

  • Diálogos (1) – Billie & Bert, questões paternas / Resident Evil (Netflix)

    Veja bem, não estou dizendo que a série de Resident Evil da Netflix é boa, porque honestamente ela é repleta de problemas. Vale a pipoca se você não se irritar com uma condução de roteiro problemática. E mesmo aos trancos e barrancos, se houver uma segunda temporada, admito que volto para ver o que mais dá para fazer nesse universo.

    Mas o objetivo desta publicação é destacar um diálogo que ocorre no último episódio desta primeira temporada (Revelações, T1:E8). Não é um diálogo digno de um Oscar, mas é um argumento bem pontuado, em torno de um problema que ali se apresenta, e que se resolve com uma conversa.

    A cena em questão ocorre em torno de 33 minutos do episódio, quando Billie Wesker está em meio a um alucinação que resulta em um ataque de pânico ali, em meio ao prédio da Umbrella a qual todos os personagens estão tentando escapar. Bert, “tio” da jovem, surge em cena e consegue acalmá-la, e aí retomamos a urgência de escapar do local.

    Segue o diálogo (transcrito da versão legendada da Netflix), a parte interessante está em destaque:

    Billie — Preciso sair daqui.
    Bert  — Certo. Vamos Achar seu pai.
    Billie — Não.
    Billie — Eu não quero saber dele. Ele não se importa comigo.
    Bert  — Claro que se importa.
    Bert  — Quando ele foi preso, ele só queria salvar vocês.
    Billie — Porque somos o remédio dele. O nosso sangue o mantém vivo.
    Bert  — E daí?
    Billie“E daí”?
    Bert  — Meu pai precisava de mim e dos meus irmãos. Ele nos manteve presos por muito tempo. Nós só conhecemos o sol depois que crescemos.
    Bert  — O Albert não é assim. Ele deu uma vida a vocês. E talvez…

    Bert  Não estou dizendo que ele estava certo, nem que era bom, mas… dava pra ser muito pior.
    Billie E isso anula os problemas?
    Bert  Não, mas… bom, talvez isso não exista.
    Bert  Talvez a vida seja um punhado de acidentes e tragédias… e ninguém esteja bem. Cada um só tenta fazer o melhor, em um mundo onde fazer o pior é sempre muito fácil.
    Bert  O seu pai ama vocês. Talvez da maneira dele, distorcida. Se você parar pra pensar, o amor é assim normalmente.

    Bert  — Mas se você quiser, podemos deixá-lo.
    Billie — Se fizermos isso… o que acontece?
    Bert  — Coisas ruins.

    De novo, não estou dizendo que o roteiro da série é algo fenomenal, ou até mesmo que é um diálogo épico, contudo é um diálogo que chamou a minha atenção. Gosto de como seu argumento quebra, ainda que momentaneamente, todo o sentimento negativo que Billie está tendo por seu pai, que de fato mentiu e ocultou informações sobre suas filhas a temporada inteira.

    É muito boa a fala sobre a vida ser repleta de acidentes e tragédias e que nesse mundo é muito mais fácil fazer o pior do que o correto. E ainda engata uma fala sobre amar é distorcer um pouco a visão que temos sobre aqueles que amamos. É uma excelente reflexão, e por isso resolvi trazer pra cá.

    Justifica perdoar um abuso ou qualquer coisa nesse sentido? Claro que não, mas a cena não é sobre perdão, mas sobre abandonar, o que é algo completamente diferente. Ali, na ficção da narrativa, abandonar o pai à mercê da Umbrella, não era a coisa certa a se fazer.

  • Trechos literários (1) – O problema com Utopias…

    Nenhuma Utopia jamais poderá dar satisfação a todo mundo, o tempo todo.

    À medida que suas condições materiais melhoram, os homens aumentam suas expectativas e vão ficando descontentes com os poderes e posses que, antes, pareciam estar além de seus sonhos mais loucos. E, mesmo quando o mundo exterior lhes tiver concedido tudo o que é possível, ainda permanecem as inquirições da mente e os anseios do coração. Arthur C. Clarke – O Fim da Infância, pág 119

    Assim abre o Capítulo 8 deste clássico de 1953. Este livro de ficção científica apresenta justamente esse mundo a qual seres espaciais chegaram ao Planeta Terra e dominaram toda a humanidade. O início de Independence Day, filme de 1996, tem como inspiração a forma como O Fim da Infância tem início, com grandes naves chegando simultaneamente ao planeta e pairando sobre as principais cidades de nosso mundo.

    As semelhanças param por aí e o livro tem outros rumos. Estes seres se auto denominam Seres Supremos e conseguem dominar todo o planeta, e impõem duras regras para que os problemas da humanidade sejam resolvidos. A tão sonhada paz mundial é atingida, a forma, a pobreza e todos os males da sociedade, imaginada por Arthur C. Clarke na década de 50, e que até hoje nos rodeiam, são de fato extintas.

    E este é um trecho que chamou a minha atenção, ao deixar bem claro que apesar de sonharmos em Utopias, nunca a alcançaremos em sua plenitude. Nunca resolveremos as inquietações da mente e do coração. Uma dolorosa verdade. Somos seres do caos e assim permaneceremos. O que não nos impede de balancearmos desigualdades deste mundo, mas sem nunca ficarmos obcecados com a tal Utopia dos contos de ficção.

    A quem se interessar:

    O Fim da Infância (Link na Amazon)
    325 páginas
    Arthur C. Clarke
    Publicado aqui pela Editora Aleph
    Lançado originalmente em 1953

    — Sinopse oficial

    Em plena Guerra Fria, enquanto russos e americanos se preparam para a corrida espacial, imensas naves surgem sobre as principais capitais do mundo, revelando um dos grandes mistérios da humanidade: O homem não está sozinho no universo.

    Seus ocupantes, chamados de Senhores Supremos, dominam a Terra de forma pacífica e melhoram substancialmente as condições de vida. A ignorância, a guerra e a pobreza deixam de existir, dando início a uma era de ouro. Porém, uma dúvida assombra a humanidade: quais seriam os verdadeiros objetivos dos Senhores Supremos? Até quando suas políticas iriam coincidir com o bem-estar dos homens? As respostas para essas questões podem revelar uma verdade aterradora.

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