Crônicas

Crônica (1) | Estragou a televisão – Verissimo Antológico

Leio as crônicas de Luis Fernando Verissimo há pelo menos menos duas décadas. Lembro de ter descoberto o autor quando o livro As Mentiras que os Homens Contam se destacou por meses entre os livros mais vendidos do Brasil, lá no longínquo ano de 2000, data de seu lançamento original (uma nova versão o relançou em 2015). Curiosamente não me recordo mais onde diabos acompanhava o ranking de livros mais vendidos no Brasil… será que ainda divulgam isso?

Desde então tenho colecionado seus livros. Não tenho todos, mas um dia chego lá. Recentemente descobri que em 2020, naquele caos do ano 1 da pandemia do coronavírus, a Editora Objetiva (pertencente ao grupo Companhia das Letras) lançou uma chaproca de mais de 700 páginas, reunindo cinco décadas de crônicas do autor. Não poderia deixar de adquirir. E é desta Antologia, que abro essa sessão no Desligado, a qual pontualmente irá apresentar algumas crônicas deste querido autor.

O objetivo aqui não é transcrever livros inteiros, longe disso. A ideia é apresentar o material, aguçar a curiosidade de quem quer que esteja aqui neste singelo espaço procurando algo para ler. O brasileiro é péssimo na leitura, mas tenho pra mim, uma opinião pessoal, de que isso acontece por lá atrás, quando crianças, não somos devidamente apresentado ao hábito de ler coisas divertidas, que nos mostrem que ler é uma maravilha. O objetivo aqui é esse, te mostrar que ler é gostoso, basta procurar o material que lhe agrade.

A crônica abaixo foi a primeira que li na Antologia, a qual abri a esmo e fiquei passando os olhos até encontrar uma que desconhecesse e me chamasse a atenção. O texto está na sessão de crônicas publicadas em 1990, e por isso tem ler com esse olhar no passado, em tempos sem internet e telinhas menores, os nossos celulares. Até porque é sobre uma sociedade alienada e desatenda, e não sobre a televisão em si. Dito isso, a brincadeira é atemporal e a tirada ainda funciona, sem dúvida alguma.

Se gostar, saiba que pode encontrar mais crônicas numa antiga sessão lá no Portallos.

Estragou a televisão

 

— Iiiih…
—  E agora?
— Vamos ter que conversar.
— Vamos ter que o quê?
— Conversar. É quando um fala com o outro.
— Fala o quê?
— Qualquer coisa. Bobagem.
— Perder tempo com bobagem?
— E a televisão o que é?
— Sim, mas aí é a bobagem dos outros. A gente só assiste. Um falar com o outro, assim, ao vivo… Sei não…
— Vamos ter que improvisar nossa própria bobagem.
— Então começa você.
— Gostei do seu cabelo assim.
— Ele está assim há meses, Eduardo. Você é que não tinha…
— Geraldo.
— Hein?
— Geraldo. Meu nome não é Eduardo, é Geraldo.
— Desde quando?
— Desde o batismo.
— Espera um pouquinho. O homem com quem eu casei se chamava Eduardo.
— Eu me chamo Geraldo, Maria Ester.
— Geraldo Maria Ester?
— Não, só Geraldo. Maria Ester é o seu nome.
— Não é não.
— Como, não é não?
— Meu nome é Valdusa.
— Você enlouqueceu, Maria Ester?
— Por amor de Deus, Eduardo…
— Geraldo.
— Por amor de Deus, meu nome sempre foi Valdusa. Dusinha, você não se lembra?
— Eu nunca conheci nenhuma Valdusa. Como é que eu posso estar casado com uma mulher que eu nunca… Espera. Valdusa. Não era a mulher do, do… Um de bigode.
— Eduardo.
— Eduardo!
— Exatamente. Eduardo. Você.
— Meu nome é Geraldo, Maria Ester.
— Valdusa. E, pensando bem, que fim levou o seu bigode?
— Eu nunca usei bigode!
— Você é que está querendo me enlouquecer, Eduardo.
— Calma. Vamos com calma.
— Se isso for alguma brincadeira sua…
— Um de nós está maluco. Isso é certo.
— Vamos recapitular. Quando foi que nós casamos?
— Foi no dia, no dia…
— Arrá! Está aí. Você sempre esqueceu o dia do nosso casamento. Prova de que você é o Eduardo e a maluca não sou eu.
— E o bigode? Como é que você explica o bigode?
— Fácil. Você raspou.
— Eu nunca tive bigode, Maria Ester!
— Valdusa!
— Está bom. Calma. Vamos tentar ser racionais. Digamos que o seu nome seja mesmo Valdusa. Você conhece alguma Maria Ester?
— Deixa eu pensar, Maria Ester… Nós não tivemos uma vizinha chamada Maria Ester?
— A única vizinha de que eu me lembro é a tal da Valdusa.
—  Maria Ester. Claro. Agora me lembrei. E nome do marido dela era… Jesus!
— O marido se chamava Jesus?
— Não. O marido se chamava Geraldo.
— Geraldo…
— É.
— Era eu. Ainda sou eu.
— Parece…
— Como foi que isso aconteceu?
— As casas geminadas, lembra?
— A rotina de todos os dias…
— Marido chega em casa cansado, marido e mulher mal se olham…
— Um dia marido cansado erra de porta, mulher nem nota…
— Há quanto tempo vocês se mudaram daqui?
— Nós nunca no mudamos. Você e o Eduardo é que se mudaram.
— Eu e o Eduardo, não. A Maria Ester e o Eduardo.
— É mesmo…
— Será que eles já se deram conta?
— Só se a televisão deles também quebrou.

***

Crônica encontrada nos seguintes livros:

Sinopse oficial – Esta antologia reúne cinco décadas da produção de Luis Fernando Verissimo como cronista, incluindo textos inéditos em livro, outros que estão há muitos anos fora de circulação e também aqueles que se tornaram clássicos. Em comum entre eles, a inteligência e o humor de Verissimo, e sua reconhecida capacidade de traduzir em poucas linhas a complexa natureza humana.

Para mais livros de Luis Fernando Verissimo, visite este endereço no site da Editora Companhia das Letras.

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